Peixe que ‘anda’ na terra? Vídeo viraliza e especialista explica comportamento
06/05/2025
(Foto: Reprodução) Registro curioso mostra peixes se deslocando fora d’água a caminho do rio; adaptação é comum em espécies que enfrentam ambientes sujeitos à seca. Vídeo de peixes cruzando a terra firme chama atenção nas redes
À primeira vista, a imagem impressiona. Dois peixes, lado a lado, se arrastando por um caminho de terra batida, como se soubessem exatamente para onde ir. O vídeo original, que já conta com quase sete milhões de visualizações, gerou espanto e dúvidas nos internautas: é possível que um peixe “ande” fora d’água?
A resposta é sim. Essa habilidade, além de ser fruto de uma longa jornada evolutiva, também pode ser executada por diversas espécies de peixes. Segundo a doutora em Ecologia pela UFRJ e pesquisadora na Universitat de Girona, Ana Clara S. Franco, o comportamento visto no vídeo não é tão raro quanto parece e pode ser entendido como um “instinto de sobrevivência” dos peixes.
“Não é considerado raro, acontece e nesses lugares que tem regime de seca e cheia, que nem o Pantanal e a região amazônica”, explica a especialista.
De acordo com Ana Clara, o peixe flagrado no vídeo se trata provavelmente de um tamboatá (Hoplosternum littorale), espécie que possui uma impressionante capacidade de respiração aérea acessória. Essa habilidade fisiológica, somada à sensibilidade química e tátil de seus “bigodes” (chamados de barbilhões), permitem que ele percorra o solo úmido até encontrar um novo habitat.
Apesar de parecer improvável, a travessia em terra é, para esses animais, uma verdadeira corrida contra o tempo. Em caso de poças isoladas, por exemplo, a redução do nível da água aumenta a competição, diminui o oxigênio disponível e altera drasticamente a qualidade do ambiente. Diante dessas condições, mover-se pode ser a única chance de sobrevivência.
O tamboatá (Hoplosternum littorale) possui uma capacidade de respiração aérea acessória que o auxilia a percorrer o solo
Wilson Lombana Riaño/iNaturalist
O grupo dos peixes é diverso e tem várias estratégias de adaptação a diferentes condições, e uma delas, como no caso desse vídeo, é uma estratégia de adaptação a ambientes que secam. O processo de secagem é gradual e dependendo do relevo do terreno, pode formar poças.
Essas poças, segundo Ana Clara, podem se tornar armadilhas naturais para os peixes. “Dependendo do nível de seca, essas poças podem ficar desconectadas entre elas. Os peixes que estão ali acabam sobrevivendo com as condições disponíveis, o que gera maior competição e até predação, se houver um predador aprisionado também”, relata.
Ela explica que, com o tempo, o nível da água diminui tanto que os peixes passam a detectar sinais de que a sobrevivência naquele local está ameaçada, levando a um deslocamento. Esse tipo de deslocamento é guiado por instinto, não por decisão consciente.
“Eles têm mecanismos de detecção dessa redução muito acentuada. Não é uma decisão analítica, como se o peixe pensasse: ‘hum, está secando, o que posso fazer?’. É um comportamento que foi sendo selecionado ao longo da evolução”, reforça a especialista.
Em caso de poças isoladas, por exemplo, a redução do nível da água aumenta a competição, diminui o oxigênio disponível e altera drasticamente a qualidade do ambiente
Nicolas Olejnik/iNaturalist
Entre os sinais percebidos pelos peixes estão mudanças químicas na água, alterações no nível de umidade do solo e até o declive do terreno. Esses peixes possuem capacidade quimiossensorial de perceber as características do local onde estão tocando, conseguindo detectar luz, som e acabam seguindo essas pistas em busca de um novo corpo aquático.
Os peixes que conseguiram se deslocar de uma poça que se secou ou de uma poça que ainda estava cheia foram selecionados, sobreviveram, e isso fez com que eles passassem os genes deles adiante. É um comportamento que foi desenvolvido, um repertório comportamental que existe nessa espécie e que foi desenvolvido ao longo de muito tempo de evolução, então são espécies que estão acostumadas a sobreviver nesses ambientes com esses regimes de seca e chuva
A pesquisadora destaca ainda que o tamboatá não é o único com essa capacidade. “A gente tem o bagre-africano, que apesar de ser invasor foi introduzido em alguns lugares do Brasil. Tem também os chamados mudskippers, nos Estados Unidos. E temos espécies que passam a seca ‘hibernando’ entre folhas ou enterradas na lama. Ou ainda os chamados ‘peixes das nuvens’, que têm ovos que resistem à seca e eclodem só com a chegada da chuva”, explica.
Apesar de muitas pessoas se surpreenderem com o vídeo, Ana Clara acredita que isso ocorre porque a maioria vive em áreas urbanas e tem pouco contato com ambientes aquáticos.
Interferir ou não interferir?
Mais do que uma curiosidade da natureza, a travessia dos peixes em terra firme evidencia a complexidade dos mecanismos que garantem a vida em ambientes extremos. Ao mesmo tempo em que impressiona pela imagem inusitada, a cena também convida à reflexão sobre o equilíbrio ecológico e os impactos das mudanças climáticas em ecossistemas tão sensíveis quanto os brasileiros.
Mas, diante de uma cena dessas, é comum surgir a dúvida: devemos ajudar o animal? Para Ana Clara, essa é uma decisão delicada e nem sempre recomendada.
“O ideal é não interferir. É uma decisão sempre complicada. Principalmente se for um local que tá sofrendo com alguma ação humana que interfira no ciclo normal do sistema, como uma queimada clandestina. Aí vale interferir e tentar salvar. Mas ainda assim pode ser complicado, porque a pessoa pode acabar introduzindo espécies onde não deve”, finaliza a pesquisadora.
*Texto sob supervisão de Fernanda Machado
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